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quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

História dos desentendimentos com deus

"(...) Cumpria-se o que o senhor havia anunciado, que enviaria um grande vento e que não deixaria pedra sobre pedra nem tijolo sobre tijolo. A distância não permitia a caim perceber a violência do furacão soprado pela boca do senhor nem o estrondo dos muros desabando uns após outros, os pilares, as arcadas, as abóbodas, os contrafortes, por isso a torre parecia desmoronar-se em silêncio, como um castelo de cartas, até que tudo acabou numa enorme nuvem de poeira que subia o céu e não deixava ver o sol. Muitos anos depois se dirá que caiu ali um meteorito, um corpo celeste, dos muitos que vagueiam pelo espaço, mas não é verdade, foi a torre de babel, que o orgulho do senhor não consentiu que terminássemos. A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele.(...)"

Excerto de "Caim" de José Saramago

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Calor subia pelos corpos

"(...) Lá em baixo, porém, os operários brandiam as varas requeimadas na ponta, cada vez mais curtas, reprimiam tosses e blasfémias. Silhuetas negras que avançavam e fugiam, ora de braços ao alto, ora encurvadas, numa dança macabra do fogo e do trabalho, ao som das máquinas. De caras transfiguradas pelo clarão vermelho do braseiro, roupas numa rodilha, chamuscadas, já não pareciam homens, mas autómatos. E a gusa solidificava nos canais paralelos. E o calor subia pelos corpos, mais e mais... (...)"

Excerto de "Engrenagem" de Soeiro Pereira Gomes

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

"Diante de uma criança"

"Como fazer feliz meu filho?
Não há receitas para tal.
Todo o saber, todo o meu brilho
de vaidoso intelectual

vacila ante a interrogação
gravada em mim, impressa no ar.
Bola, bombons, patinação
talvez bastem para encantar?

Imprevistas, fartas mesadas,
louvores, prêmios, complacências,
milhões de coisas desejadas,
concedidas sem reticências?

Liberdade alheia a limites,
perdão de erros, sem julgamento,
e dizer-lhe que estamos quites,
conforme a lei do esquecimento?

Submeter-se à sua vontade
sem ponderar, sem discutir?
Dar-lhe tudo aquilo que há
de entontecer um grão-vizir?

E se depois de tanto mimo
que o atraia, ele se sente
pobre, sem paz e sem arrimo,
alma vazia, amargamente?

Não é feliz. Mas que fazer
para consolo desta criança?
Como em seu íntimo acender
uma fagulha de confiança?

Eis que acode meu coração
e oferece, como uma flor,
a doçura desta lição:
dar a meu filho meu amor.

Pois o amor resgata a pobreza,
vence o tédio, ilumina o dia
e instaura em nossa natureza
a imperecível alegria."

Poema de Carlos Drummond de Andrade