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terça-feira, 9 de março de 2010

Entre o tiro e o despedimento

"(...)De súbito, o som do apito reboou na encosta, e os caboqueiros distanciaram-se do local em que o capataz pegava lume ao rastilho. As explosões abalaram o morro todo. Mole de rochas e terras subiu em leque e abateu com fragor. Algumas pedras sibilaram como balas rentes ao pessoal. E o estrondo repercutiu-se sobre a aldeia, enquanto leves nuvens de poeira e fumo pairavam no ar.
Os homens iam a sair dos abrigos improvisados, com pressa de acabarem as tarefas, quando o encarregado berrou:
- Falta um tiro! Inda não apitei!
Acharam-se outra vez atrás da penedia. Passaram-se minutos.
- Alors? - Interrogou Henri.
- Então? - repetiu Amaro ao capataz.
Este encolheu os ombros, arreliado.
- Às vezes fica assim a moer; mas safa-se.
- Você tem a certeza de que o rastilho estava acesso? E chegou-lhe bem a mecha?
- Sim, senhor. Ficou a arder.
Fez-se silêncio. Outros minutos decorreram, expectantes, até que Henri verificou o cronómetro.
- Basta de esperar - disse em francês. - O capataz que dê o sinal.
O empregado ergue-se e ordenou:
- Apite, que já se pode trabalhar.
- Ai isso é que não apito, senhor Amaro. Peço desculpa...
- Quem manda aqui? É você?!
- Eu não, é claro. mas acho que inda há perigo.
- Que diz ele? - Inquiriu Henri.
- Não apita. Está com medo.
Henri praguejou. Hirto, o capataz fitava os chefes, como condenado à espera da sentença. Aproximaram-se operários, preocupados com o desfecho da questão, o qual veio num gesto violento do engenheiro, que Amaro concretizou:
- Ou apita, ou vai-se embora.
- Vou-me embora - respondeu com voz firme o capataz. Entregou o apito e acrescentou:
- Se acontecer algum mal, a responsabilidade é sua.
- Dê o sinal - ordenou Henri.
Frouxo e trémulo, o assobio chegou aos ouvidos da malta; mas ninguém se mexeu. Outro sinal, agora vibrante, ecoou nas rochas inutilmente. Então Henri perdeu a calma, atirou impropérios à cara dos homens, que, todavia, permaneceram de olhos baixos e teimosos.
- Repita-lhes o que eu disse! - gritou ao empregado. - E que são todos despedidos. Todos.
- O senhor Henri diz que vocês são uns porcos, uns cobardes, e que manda todos embora.
Como que encurralados (de um lado, o tiro, do outro o despedimento), o pessoal agitou-se. De algumas bocas saíram queixas e protestos imperceptíveis:
- Há algum direito?...
- O Fariseu, se cá estivesse, é que sabia responder-lhe.
A ameaça atarantava-os. Anteviam-se despedidos, sem terras, sem trabalho, e a viverem das economias, como se comessem as próprias entranhas. Sentiram-se pois aliviados quando Robalo propôs:
- Eu não me importo de ir apalpar o furo. Se o patrão quiser...
Reflectira antes de falar. «Arriscado, era. Mas o capataz fora-se embora e alguém o substituiria. Portanto, ou agora... ou nunca.» Sem esperar pela resposta, galgou a primeira banqueta. De longe, ouviu-se a voz agoirenta do capataz.
- Não vás, Robalo! Não vás!
Um calafrio arrepiou os caboqueiros. Fez-se maior silêncio. Todos tremeram pelo companheiro que escalava o morro, em cujo cimo o moinho grande, parado, abria as lanças em cruz. Pingos de chuva caíram, e ninguém os sentiu. Mais fria que a chuva, a voz distante do capataz arrepiava o pessoal e retardava os paços de Robalo.
- Não vás... Não vás...
Vencida, a voz perdeu-se no silêncio e na humidade cinzenta do firmamento. Robalo, subindo sempre, desaparecia atrás dos pedregulhos, surgia mais acima. Os pés, pouco firmes, resvalavam-lhe na lama, e uma pedra, que rolou, fê-lo estacar. Limpou da cara camarinhas de suor frio. «Voltar para baixo seria uma vergonha. Estava quase no fim...»
De súbito, estatelou-se de braços no ar e rolou pela barreira abaixo, entra avalancha de terras e pedregulhos. Por breves segundos sentiu uma dor aguda, que não soube localizar; depois, toldou-se-lhe tudo em redor, ficou inconsciente.(...)"

Excerto de "Engrenagem" de Soeiro Pereira Gomes

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