"(...)O padre suspirou. João era um antigo guarda-freio emigrado lá na cidade e que enlouqueceu quando os comboios deixaram de circular. O homem regressou à ilha, mas uma parte dele ficou para sempre junto de uma estação ferroviária à espera do lento suspiro dos trens. Que pretendia o velho tresloucado àquela hora? Quando Dulcineusa abriu a porta, o padre, meio ofuscado pela claridade exterior, apenas vislumbrou um burro. Um jumento tão encharcado que as orelhas lhe tombavam, sob o peso. Só depois descortinou o vulto de João Loucomotiva.
O antigo ferroviário sacudiu as mangas do casaco e passou a mão, em concha, a recolher o molhado que lhe escorria pelo rosto.
- Entre, meu amigo. Mas entre sem o burro.
Tarde de mais. O asno já se instalara no abrigo e recusava o uso da força para voltar a transpor a porta. O bicho empancara, cheio de testa, todo o corpo teso. João Loucomotiva desistiu de empurrar o animal. O padre acabou aceitando a desordem natural das coisas. O asno escoiceou no chão e o som do casco ressoou pelo recinto. Era a proclamação da sua tomada de posse.(...)"
Excerto de "Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra" de Mia Couto
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