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quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Maquineta pequeno trabalhador do carvão

"(...) Começou a descarga. Cesto virado, cesto cheio... - pernas vergadas ao peso do carrego, pé lesto e com jeito na palma da prancha, que o trambolhão era de respeito - o formigueiro humano não parou mais. No pontão, o capataz vigiava a descarga; nos barcos, os homens de confiança não davam confiança às pás.
- Andem-me com isso de cagulo!
Cesto virado, cesto cheio... As vagonetas deslizavam nos carris e o carvão já formava monte no terreiro.
- Ó tu, papo-seco dum raio! Que estás à espera?
A exclamação escarninha era para Maquineta. Papo-seco... Nem se lembrara de tirar o casaco , que estreara há três anos, pela Feira. E agora, mascarrado e roto, enrodilhava-se nos braços, dava-lhe ao corpo feição de espanta-pardais.
Cesto virado, cesto cheio... O Maquineta ia e vinha arquejante e suado - pés com jeito na palma da prancha, que as botas escorregavam como em sebo e apertavam-lhe os pés.
Na fábrica, a buza apitou demoradamente. Oito horas. O coração de Maquineta bateu com mais força sob o peito oprimido. Iam entrar nas oficinas.
«... Chego lá e digo: - Sôr Anriques, eu sou o rapaz que a patroa mandou...» É verdade. Era Anriques o nome do capataz. Mas já de nada valia lembrar-se.
Má-Cara notou a atitude abatida do pequeno trabalhador e increpou-o, colérico:
- Langão dum raio! Já atrasaste um caminho. Se andas a dormir, eu estou com os olhos abertos.
E não contente, virou-se para os homens do barco:
- Tomem-me conta deste cesto. Carreguem-lhe no peso, ouviram?
Maquineta deitou um olhar suplicante para os camaradas das pás. Eles, porém, eram homens de confiança, e sabiam que o chefe estava com os olhos abertos...
Então o moço, humilhado e vencido, sentindo-se sozinho no meio daquela gente que não reparava no seu jeito para serralheiro, deixou que as lágrimas fizessem sulco longo nas faces mascarradas.
Um camarada tocou-lhe no ombro:
- Não chores, pá! Olha que o gajo tá-se a rir de ti.
Encheu-se de brio; cerrou os lábios. «Nem que rebentasse, daria ensejo a troça.» Mas os cestos pesavam mais e mais. Já não sabia se as gotas que lhe escorriam pelas faces eram de pranto ou de suor. O capataz a rir-se no pontão... - e os pés em suplício, prisioneiros das botas como ele todo dos olhares felinos do Má-Cara.
Fez rodilha do casaco e descalçou um pé, antes que lhe aprontassem o cesto. mas os braços dos homens eram como êmbolos de máquinas.
- Avia-te, moço...
Lá foi, prancha acima - pé nu e pé calçado -, sob a chacota do capataz, mais dura que o carrego. Ia-se-lhe o pensamento para a buza altaneira, que limitava cansaços na fábrica e se esquecia dele, ali, junto do rio. como se o tempo fosse outro Má-Cara, a reger aquela empreitada de fadigas.
E o batelão que não tinha fundo!... «Mas nem que rebentasse, arriaria. Havia de calcar o cesto aos pés, no fim do trabalho. E, depois, ao passar pelo capataz, direito e natural como se o corpo ainda guardasse forças para dar e vender, cuspiria para o lado com desprezo.»
A voz de comando estalou no ar, como chicotadas:
- Larga de conversa! É andar.
Aquilo não era com ele. Porque, se abrisse boca, seria para gritar a sua revolta contra tudo e todos. Por isso mordia os beiços e sondava a caverna do batelão, sempre negra, sem miragens.
O Má-Cara fora também lá abaixo trespassar o negrume com o seu olhar felino, e voltara com ar de vencedor. Mais um cesto e outro...
- Desferrem!
Maquineta ficou de braço no ar e cesto às costas, como se não tivesse ouvido.
- Veio-te agora o poder? Poisa lá o cesto.
Fitou de frente o capataz. A boca seca, sedenta, não o ajudou a cuspira para o lado, com desprezo. Quis endireitar o corpo exausto... vacilou. O cesto caiu-lhe das mãos... As pernas encaminharam-se para o portão de saída...
E foi a mãe quem recebeu, depois, a féria daquele dia.(...)"
Excerto de "Esteiros" de Soeiro Pereira Gomes

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